Quem não repensou a própria carreira durante o isolamento social, atire a primeira carteira de trabalho! Em tempos de incerteza, é natural cogitar novas formas de viver, se relacionar e até trabalhar. E quando o assunto é trabalhar com roteiro, existem muitas coisas a se considerar além da escrita em si.
Ao conversar com diferentes roteiristas que já fizeram essa transição, a conclusão é a mesma: o caminho a percorrer é árduo, incerto e demora anos para ser percorrido. Mas aqueles que persistem conquistam a satisfação de ver algo que escreveram se tornar realidade.
Está ciente e quer continuar? Então, vamos conhecer as histórias de quem passou por isso para te preparar e te inspirar sobre o que está por vir!
Trabalhar com roteiro é uma questão de escolha?
Num mundo ideal, cada pessoa trabalharia com o que tem vontade e ganharia um valor justo por isso. Porém, sabemos que isso está longe de ser realidade. No contexto em que vivemos, a escolha de um curso no vestibular passa por vários outros filtros – como o das expectativas da família, status social e, principalmente, estabilidade financeira.
Quando a roteirista Letícia Bulhões Padilha tinha 17 anos, ela sabia muito bem o curso que queria fazer: Rádio e TV. Porém, sem recursos suficientes para bancar a faculdade dos seus sonhos, teve que recalcular a rota e optou por cursar Sociologia.
Já o roteirista Marco Borges sequer tinha a ambição de fazer faculdade. De onde vinha, a maioria dos jovens começavam a trabalhar como office boys. Filho de mãe solteira, ele conseguiu uma bolsa num curso preparatório militar e acabou cursando Engenharia.
Portanto, o ato de migrar para a área de roteiro muitas vezes não é uma questão de “mudar de ideia”. E sim, de conquistar autonomia suficiente para (re)fazer essa escolha profissional com base nos próprios critérios.
De repente trabalhar com roteiro
Por outro lado, nem sempre o desejo de viver da escrita nasce de uma insatisfação total com o curso escolhido. Essa vontade de trabalhar com roteiro pode ir crescendo aos poucos e conviver em harmonia com a sua profissão “oficial”.
O roteirista Lucas Nogueira sempre soube que queria trabalhar com Psicologia. Passou na USP, dedicou-se ao atendimento de pacientes e se especializou em Psicanálise. Com sua identidade profissional estabelecida, se viu com tempo suficiente para explorar outras áreas, como o cinema. Foi atrás de estudar mais sobre o assunto e se encontrou no roteiro.
Já a roteirista Junia Lemos estava prestes a se formar no curso de Direito, também na USP, quando decidiu fazer um curso de teatro. Ela buscava se afastar do estresse vindo do TCC e dos estudos para a prova da OAB. No teatro, percebeu seu interesse e facilidade com os textos e começou a trilhar seu caminho no audiovisual até o roteiro, passando pela produção executiva.
Mesmo quando tiverem uma carreira estabelecida no trabalho com roteiro, Lucas e Junia não pretendem abrir mão de suas profissões. “Nunca vou parar com a clínica, me identifico muito e tenho pacientes que atendo há anos.”, diz Lucas. Já Junia passou por um desencantamento com o curso de Direito, mas gosta de atuar na fronteira entre as duas profissões. Ela concilia trabalhar com roteiro com seu trabalho no setor de entretenimento do BS&A Advogados, escritório do qual ela é sócia há 4 anos.
O ponto de virada
Eventualmente, os quatro entrevistados chegaram ao x da questão: “quero trabalhar com roteiro, e agora?”. Como qualquer grande decisão, uma transição de carreira requer planejamento, esforço e resiliência. Nos 5 anos que trabalhou na indústria petrolífera, Marco guardou renda suficiente para se manter por um ano e meio. Ele prestou vestibular novamente, passou em Cinema em UFF e só então saiu da fábrica onde trabalhava.
Junia decidiu fazer pós-graduação em Roteiro na FAAP, depois de um período estudando por conta própria. Ela acredita que a carreira de trabalhar com roteiro é composta de três marcos importantes: aprender a escrever, ter pessoas lendo o que você escreve e ver algo que você escreveu ser produzido. Da mesma forma, Lucas fez uma série de cursos na Roteiraria para se especializar.
Já Letícia fez um curso na Academia Internacional de Cinema (AIC) durante o último ano da faculdade e tomou sua decisão. “No fim de 2010 eu me formei e decidi que só iria trabalhar se fosse em audiovisual. E aí começou essa grande saga.”
Não é uma despedida
Quando bate a crise existencial, é comum julgar o tempo gasto com a primeira vocação como “perdido”. Mas as experiências adquiridas em outra área de atuação podem ser muito valiosas quando se trabalha com roteiro.
No caso do Lucas, sua formação em Psicanálise serviu até como ponto de contato com a área de roteiro. Por incentivo de José Carvalho, sócio-fundador da Roteiraria, ele criou o curso de Psicanálise Para Roteiristas. Nele, faz uma intersecção entre os dois assuntos, explicando conceitos de psicanálise com base em exemplos do cinema e da TV.
Junia também aplicou seus conhecimentos de Direito quando deu aulas no Instituto de Cinema ao lado de Ana Carolina Capozzi. As duas ministraram aulas sobre direitos autorais e contratos, dentro do curso de Produção Executiva da escola. Ela acredita que sua experiência em Direito lhe ajuda até hoje a sistematizar ideias e conceitos, além de negociar melhor seus roteiros.
Marco também acredita que sua formação em engenharia é benéfica para a escrita. Ele diz: “Ajudou na disciplina, no pensamento estruturado e a identificar problemas. Vem da engenharia uma lógica geométrica, de encaixar peças”. A facilidade com Exatas também foi crucial para calcular preços e tempo necessário para seus projetos de forma certeira.
Letícia também não abandonou a Sociologia. Quando dá aulas sobre roteiro multiplataforma na AIC, aplica conceitos que aprendeu na faculdade. Ao escrever, também faz uso da visão crítica, da observação participante e da pesquisa de campo. Ela ainda tem planos de fazer mestrado em Ciências Sociais, com foco em televisão.
Como começar a trabalhar com roteiro?
Se você chegou até aqui, já entendeu que estudar roteiro da forma que puder (faculdade, pós ou curso livre) é imprescindível para uma boa escrita. Por outro lado, sabe que também vai aproveitar as competências da sua ocupação atual ao escrever.
Mas como se inserir no mercado para trabalhar com roteiro de fato? A verdade é que não existe um único caminho, mas quase todos passam por networking. Por isso, é essencial manter contato com outros roteiristas – e não ter grandes expectativas nesse início de carreira.
Enfrentar as resistências internas e externas da escrita de roteiro é o principal desafio, na visão de Lucas:“É uma habilidade específica, não é só ter ideias. As pessoas não entendem que é um processo, tem que ter paciência”.
Também é importante não ser seletivo demais. Tanto Marco quanto Letícia escreveram para diferentes veículos e formatos até chegarem ao roteiro de ficção. “Mas acho importante mostrar que se souber insistir e ser humilde, dá”, conclui Letícia, que é roteirista de projetos como A Culpa É Da Carlota (roteirista-chefe: Fernanda Leite) e a série Auto Posto (criado por Marcello Botta).
Hoje, existem várias iniciativas e eventos que servem como porta de entrada para roteiristas iniciantes. Em 2020, Junia foi premiada com diferentes projetos em concursos como FRAPA, Cabíria, Lab Guión e OEI. Ela reforça que: “Não foi da noite pro dia, tudo isso foi fruto de três anos estudando, correndo atrás”.
A tal “linha de chegada”
Com mais de 15 anos de carreira, Marco trabalhou em séries como Perrengue, Gaby Estrela, Segunda Chamada e Cidade Invisível, além de criar a série Conselho Tutelar. Ele garante que não existe glamour na profissão e que é preciso coragem para seguir por esse caminho: “Tem que querer mais do que tudo”.
Apesar das dificuldades específicas do meio, trabalhar com roteiro é sempre uma escolha. Ninguém é obrigado pelos pais a ser roteirista, ou herda um roteiro pra escrever (nota da autora: hm, essa ideia dá um roteiro, hein?).
Por isso, talvez a melhor forma de manter a força de vontade é lembrar por que você quer ser roteirista pra começar. É como o próprio Marco diz: “Quando dou aula de roteiro, costumo perguntar: o que transborda de você? Precisa ver o valor da própria história. Formação é importante, mas o que você tem a dizer?”.
E aí, você tem o que dizer? Acha que o veículo pra isso é o roteiro? Conta pra gente nos comentários!