Dia desses vi um vídeo da escritora Elizabeth Gilbert diferenciando claramente os itens Hobby, Trabalho, Carreira e Vocação. Essa informação teria me ajudado muito há uns anos atrás quando eu enxergava todos eles da mesma maneira e nem sabia o quanto essa confusão me angustiava. Realmente, viver da escrita é o que faço. Pra mim ela é tudo isso: hobby, trabalho, carreira e vocação. Mas hoje eu sei que preciso me relacionar de maneiras diferentes com cada tipo de texto que eu faço. Só assim dá pra viver da escrita sem surtar.
A escrita como hobby
No vídeo, a Elizabeth diz que hobby é a atividade que você faz apenas pra se divertir. Você gosta do processo, ele te ocupa, te alegra e não exige quase nada em troca: não há nada em jogo aqui. Por mais que a escrita seja uma das coisas mais importantes da minha vida, de vez em quando eu escrevo por hobby sim. Escrevo poesias que jogo no Facebook, escrevo posts de blog e costumava escrever zines que mandava pelo correio pra um público enorme de 5 leitores. Enfim, escrever coisas gostosinhas e descartáveis é um dos meu hobbies, assim como desenhar. Adoro, mas não tenho intenção nenhuma com isso.
Viver da escrita – trabalho x carreira
Mas quando se fala em “viver da escrita”, geralmente estamos pensando em remuneração. Pagar as contas com os textos. E daí entram os itens mais complicadinhos: trabalho e carreira. Elizabeth define trabalho como algo descartável, mas imprescindível. Isso quer dizer que você precisa ganhar dinheiro pra sobreviver, mas a maneira como você faz isso pode variar. Pode ser fazendo algo que você odeia ou que você ama, algo que você larga depois de um mês ou que você fica por 10 anos. Mas você não precisa ter uma relação tão pessoal com o trabalho se não quiser e pode pular de um trabalho pra outro sem grandes implicações.
Já a carreira é algo que você constrói ao longo do tempo, tentando tomar medidas que te levem a uma ascensão. Ela está muito mais ligada à sua identidade e requer cuidado e planejamento. Tem a ver com dinheiro também, afinal “subir” na carreira geralmente implica em receber uma compensação maior. Mas não é raro ver pessoas mudando de emprego pra receber um salário menor, contanto que isso as deixe mais próximas da rota de carreira que elas planejaram. Carreira pode estar ligada ao trabalho ou não. OU NÃO! Já parou pra pensar que o trabalho que você exerce agora não precisa ter nada a ver com sua carreira? Eu nunca tinha pensado nisso. E no meu caso, foi aí que as coisas se complicaram.
Por muitos anos, na tentativa de viver da escrita, eu confundi trabalho com carreira. Desde o fim da faculdade, trabalhei como redatora de tv. Na maior parte do tempo fiz chamadas, vídeos institucionais, comerciais e alguns programas de tv. No começo, encontrei prazer e desafio intelectual nestas atividades, mas depois de um tempo elas começaram a me frustrar. Quando fui perceber, já tinha passado 10 anos construindo conexões sólidas, uma imagem profissional confiável e até tinha conseguido um pouco de ascensão. Sem querer querendo, eu tinha construído uma “carreira”. Ela era como uma casa feita de tijolinhos que eu não escolhi, apenas aceitei quando me foram oferecidos, e dentro da qual eu não queria morar. E isso me dava uma frustração imensa.
A diferença de trabalho e carreira
Hoje eu vejo claramente que atuar como redatora de tv é apenas um trabalho. É algo que sei fazer mas não é uma carreira. Porque pra mim, Andrea, é apenas uma maneira de conseguir dinheiro pra viver (não é o tal do viver da escrita?) Esse trabalho me mantém enquanto eu construo a carreira que eu realmente quero e escolhi pra mim, aquela em que vou investir todo tempo, educação e amor, que é a de roteirista de ficção e escritora.
Separar os dois conceitos me ajuda muito a lidar com fracassos, frustrações e culpas. Porque tanto faz o que acontece com o meu trabalho, posso perder um aqui, dizer não pra outro lá, mas contanto que eu continue competente, logo um novo trabalho virá. E contanto que os trabalhos continuem chegando na mesma velocidade dos boletos (e nenhum dos dois tá parando de chegar) vai ficar tudo bem.
Comecei a ver os jobs como uns lindinhos que me dão apoio enquanto eu caminho lentamente nessa estrada comprida e seca que é a carreira de autora. Os trabalhos – dos quais eu tanto já reclamei na vida – bancaram meu curso de roteiro na UCLA. Eles me deram músculos e fôlego (metafóricos) que hoje me fazem ser capaz de sentar numa cadeira e escrever por 8 horas seguidas. Eles me treinaram pra ouvir feedback, trabalhar em cima de críticas e respeitar prazos. Esse trabalho não é a minha carreira, mas a fortalece ao invés de destruí-la.
E aos poucos vou cimentando os tijolinhos da nova casa que agora construo conscientemente. Escrevi meu primeiro longa, estou escrevendo meu primeiro livro, tentando produzir um curta… E enquanto nada disso dá dinheiro algum, tenho os trabalhos pra me sustentar. Viver da escrita pode ser “viver” no sentido de se sustentar e “viver” no sentido de vivenciar, experimentar, a longo prazo.
Os trabalhos são imprescindíveis sim, mas de uma certa forma, “descartáveis”. Se eu nunca mais escrever uma cabeça de apresentador, eu não ligo. Se eu nunca mais fizer uma chamada, eu tô cagando. Se eu nunca mais entrevistar um funcionário de banco pra fazer um vídeo institucional, ÓTIMO. Mas se eu continuar fazendo tudo isso pro resto da vida, eu vou fazer direito, sabendo que nada disso define quem eu sou.
Viver da escrita como vocação
E daí vem o último item (meu preferido): a vocação. É aquela coisa que você sente que nasceu pra fazer. Talvez seja o item mais difícil porque é com ele que você mais se importa. Você tem medo de falhar, de ser julgado, de ser um fraude. Mas quando dá certo, é o que te dá mais satisfação.
A minha vocação é escrever ficção. É algo que me satisfazia na infância, me satisfaz hoje e provavelmente continuará me satisfazendo até eu virar uma velhinha japonesa com cabelo tingido de roxo. A vocação é intransferível, inesgotável e meio mágica. Ninguém pode tirá-la de você. Minha vocação e minha carreira estão intimamente ligadas.
Tenho a impressão de que a vocação da escrita nasceu comigo, porque pelo que sei, ela sempre esteve aqui. Mas aprendi que uma vocação também pode levar tempo pra se revelar, pois foi assim em relação a ensinar. Fui descobrir essa vocação aos 35 anos, quando comecei a orientar minha primeira aluna a escrever um livro (Estrada 171 da Thais Struzani), de um jeito bem informal.
Eu comecei porque senti que tinha conhecimento teórico e técnico suficiente, mas logo reconheci nesse papel de professora uma maneira de dar vazão à atitudes que sempre foram muito naturais pra mim: ajudar, compartilhar informação, aconselhar, acolher e motivar.
Tem gente que acha que eu dou aulas de escrita porque é um trabalho, algo que eu faço pra ganhar uma grana enquanto construo a carreira de roteirista. Mas não se engane. É uma vocação profundamente pessoal, assim como escrever. Me dá alegria e me faz sentir que o mundo é um lugar mais legal.
E por enquanto não consigo viver totalmente das minhas vocações, mas a cada ano vou aumentando o meu portfólio nas duas. Como roteirista, fui colaboradora e assistente da série Cidade Invisível, uma superprodução da Netflix. Como professora já dei aulas na AIC, SENAC e agora na pós-graduação da FAAP. Estou pela segunda vez dando consultoria para um projeto aprovado no PROAC. Além disso, à pedido da Netflix criei um curso preparatório para os seus assistentes de sala de roteiro, além de oferecer à eles uma mentoria semanal.
E olha que engraçado, no caso da vocação pra ensinar roteiro, ela é um trabalho, mas não sei se é uma carreira (eu sei que pode se tornar uma carreira, mas sinceramente eu não ligo se não for). É a forma de viver da escrita em sua forma mais bonita, no sentido de que ela te dá vida, te faz sentir mais presente, feliz, realizado.
Resumindo então…
Hobby – escrever poesias, posts de blog, zines
Trabalho – redação de tv, traduções e dar aulas de escrita
Carreira – escrever ficção
Vocação – escrever ficção e dar aulas de escrita
Entender que carreira não precisa ser uma progressão de trabalhos motivados por minha vocação é libertador. É ótimo pra tomar decisões, seja no “sim” ou no “não”. Continua sendo difícil separar tempo pra fazer tudo que eu quero, preciso ou gosto, mas essas diferenciações me ajudam a navegar. Assim eu consigo dar a importância certa pra cada coisa e me manter em curso.
Assistam o vídeo da Elizabeth Gilbert e repensem como vocês enxergam seu hobbies, trabalhos, carreiras e vocações. É tão bom se resolver, eu recomendo 🙂
Não tem legendas em português, mas a mensagem é basicamente o que eu falei aqui com palavras mais bonitas e a risada maravilhosa da Elizabeth Gilbert.
Adorei texto. Era bem o que eu precisava ouvir. ^^