Que tal a gente falar sobre esse processo necessário e assustador que é reescrever seu roteiro? Depois de levar meses – muitas vezes, até anos – pra terminar o primeiro tratamento de um roteiro, é normal criar um certo distanciamento. A gente fica esgotada por ter colocado todas as ideias no papel e tem certeza de que não há mais nada a ser feito ali.
Quando gosta do resultado, fica achando que não precisa alterar mais nada. E quando não gosta, vixi… aí falta coragem de abrir o documento e encontrar soluções para problemas que parecem simplesmente impossíveis de resolver. Mas como vocês já devem ter ouvido por aí, escrever é reescrever, reescrever e reescrever.
Então, neste post vou falar sobre como entrar nesse processo de reescrever um roteiro com a mente renovada, quase como se você estivesse começando num novo projeto. Separei alguns passos:
- Pedir opinião dos outros
- Mergulhar na Pesquisa
- Aprofundar personagens
- Ser drástico
- Ser técnico
Vamos lá?
Se Conselho Fosse Bom…
A primeira dica é pedir a opinião de pessoas da sua confiança, que possam ler e criticar o seu trabalho. Isso faz a gente ver a história por outro ângulo, perceber partes confusas ou desconexas que só fazem sentido na nossa cabeça, e ainda, quais personagens agradam e quais não tem carisma algum, etc. Uma simples conversa sobre a história já pode acionar seu cérebro a explorar novas ideias.
Já dizia o ditado que se conselho fosse bom ninguém dava, vendia. Concordo que conselho bom não é fácil de achar. Porém se você parar pra pensar, tem muita gente SIM que “vende conselho”, como terapeutas e mentores. E na área de roteiro mesmo, existem consultores, script doctors e profissionais de desenvolvimento cujo trabalho é dar feedback para roteiristas reescreverem seus projetos. Mas como separar o joio do trigo?
Eu diria pra escolher uma pessoa DISCRETA, que não vai sair contando a sua história pra todo mundo, e o pior, falando mal dela! De preferência alguém que TAMBÉM ESCREVE e conhece as dificuldades dessa tarefa, ou alguém que lê/assiste o gênero que a sua obra trata. E por fim, uma pessoa que seja GENEROSA, que saiba reconhecer os pontos positivos do seu trabalho e fazer críticas construtivas que vão te ajudar a encontrar soluções.
Claro que nem sempre é fácil encontrar esta pessoa (quando você encontrar, não largue mais)! Por isso é primordial também aprender a FILTRAR os conselhos. Às vezes não é por mal, a pessoa não entendeu direito a sua mensagem ou não gosta do estilo daquele roteiro específico. Não vale a pena ficar pirando em qualquer crítica boba, mas também não se feche ou fique ofendido quando alguém for duro demais e não disser o que você espera ouvir.
Feedback Profissional
Um jeito de conseguir um feedback mais profissional, é se inscrever nas rodadas de negócios de festivais como FRAPA e Série Lab. É uma oportunidade de conversar, por 20 minutos que sejam, com alguém que está no mercado diariamente analisando roteiros e roteiristas.
Hoje você encontra também profissionais que cobram pra ler seu roteiro e dar um parecer. Pode ser bacana, mas verifique sempre qual a formação e experiência dessa pessoa, ou se você conhece alguém que já usou seus serviços. Uma boa análise vai tratar de assuntos técnicos (falar da estrutura, da qualidade dos diálogos, da força da premissa, etc) e vai ser construtiva. Cuidado com o puro “achismo”, “gostei/ não gostei”, opiniões subjetivas demais ou que não te dão a mínima vontade de voltar a escrever.
De novo, é preciso aprender a separar o joio do trigo. Tanto leitores amadores quanto profissionais podem ser extremamente tóxicos. Não dá pra consertar as pessoas, mas dá pra aprender a ler as pessoas.
Pra ter esse equilíbrio não existe fórmula mágica. É importante se AUTO-CONHECER. Isso não acontece da noite pro dia e envolve não só sua identidade como escritor, mas também, como pessoa. Então vá pra terapia, faça ioga, reflita na escuridão do seu quarto, enfim, se olhe no espelho e comece a discernir o que te ajuda a crescer do que te derruba.
Oi, gostaria de fazer uma pesquisa
Na hora de reescrever um roteiro vale a pena aprofundar a pesquisa do universo que você está abordando. Não só pra ter uma história mais realista ou fugir de estereótipos, mas também pra buscar inspiração.
Tem uma cena acontecendo num café? Visite um lugar parecido e anote o que te rodeia. Não se prenda ao visual, tente definir cores, cheiros, sons, sensações… Observe os trabalhadores. Estão felizes, entediados, de mau humor? A atitude deles muda quando atendem um cliente ou conversam com determinado colega?
Fique com os ouvidos atentos à conversas, o que será que eles escutam todo dia? Cantadas? Broncas? Reclamações? Uma vez ouvi uma mulher reclamar da xícara em que foi servida (a coisinha mais linda do mundo mas não tinha alça e ela achou isso um absurdo). Espere pelo inesperado.
Está pesquisando um personagem? Procure alguém que viva uma situação parecida ou represente o grupo em que esse personagem se encaixa (é classe média, gay, morou em 5 cidades diferentes antes dos 15 anos?) e converse com ela. Mas converse como um escritor. Não escute apenas o que essa pessoa diz com palavras, observe o jeito como se veste, como se move e o subtexto da conversa.
E vá com a mente aberta. Não assuma que as coisas são do jeito que você imagina porque a realidade pode ser confusa, contraditória, surpreendente e isso é bom demais. Com certeza você vai encontrar muitos detalhes inesperados que podem dar mais vida à sua história.
Conheça Melhor Seus Personagens
Essa dica é tipo vinagre com bicarbonato de sódio, tem mil e uma utilidades. Pra reescrever um roteiro é importante se aprofundar na criação de personagem. A história melhora, os diálogos melhoram, a caracterização melhora, TUDO FAZ MAIS SENTIDO (EU PROMETOOOO)!
Vá além da fórmula qualidades+defeitos+problema+objetivo. Crie um passado pro personagem, entenda suas motivações, seus traumas, suas lembranças. Busque pelos detalhes, o que gosta de comer, qual sua peça de roupa favorita, a primeira coisa que faz ao se levantar. Entenda sua psique, como pensa, como fala, aonde se contradiz.
E aí você me diz: “mas pra quê, minha história se passa em uma semana, não vai dar tempo de usar tudo isso.” Verdade. Provavelmente você vai colocar nas suas páginas 20% de todo esse trabalho de construção. Só que em cada fala, cada ação, cada decisão, você vai ter 99% de certeza que é assim que seu personagem agiria se fosse uma pessoa real. E isso transparece.
Uma boa construção de personagem não serve apenas pra ter um personagem interessante e autêntico. Serve pra guiar a história pois através das reações do personagem é que você vai entender qual o passo mais natural pra narrativa seguir.
Nos meus Downloads Gratuitos você pode baixar alguns exercícios de criação de personagens.
VIDA LOKA
Reescrever é um estágio muito legal porque você já terminou seu roteiro uma vez. Você salvou uma primeira versão completinha numa pasta especial e lá ela vai ficar. Agora você tem a liberdade de experimentar, sabendo que caso todas as mudança que você fizer não funcionem, você tem uma versão a salvo e pode sempre voltar pra ela.
Não sei se vocês repararam mas a gente se apega muito a cenas ruins simplesmente porque não sabemos o que colocar no lugar. A gente viu que não tá bom, mas ficamos em negação, arranjando desculpas na nossa cabeça para não precisar alterar. No momento que uma ideia melhor surge, a gente consegue admitir que aquela solução anterior não era tão boa assim. Mas e se desde o começo a gente já estivesse aberto para aceitar que vai ficar um buraco momentâneo ali, até achar uma solução?
Por isso, acho que precisamos adotar um pouco o método #vidaloka:
- Não tenha dó de cortar cenas inteiras e até mesmo personagens. Em alguns casos é melhor apagar do que remendar o que não tem jeito. Aceita.
- Tente encurtar cenas cujo ritmo está arrastado ou que não tenham muita função dramática. SEJA HONESTO ao analisar se a cena tem função ou não. E se você não quer cortar de jeito nenhum, arranja uma função pra ela! Ou separa esse elemento que você gostou (às vezes é só um diálogo ou uma ação ou um lugar) e tenta colocar em outra cena.
- Troque cenas de lugar
- Junte acontecimentos que estão em cenas separadas ou separe cenas que têm situações muito diferentes
Tudo isso num DOCUMENTO SEPARADO, tendo certeza que não está SALVANDO EM CIMA DA PRIMEIRA VERSÃO. Pelo amor da deusa, hein?! Ter back up não suja a reputação de nenhum vida loka (regra inventada agora).
Roteirista Não É Bagunça (É. Mas vamos fingir que não é, por um segundo)
Falando em salvar uma segunda versão, tem outras providências técnicas que você pode tomar para organizar a reescrita e não entrar nesse buraco sem fundo que é o seu desktop.
- Depois de fazer uma leitura completa do primeiro tratamento, anote as alterações que quer fazer. Abrir o documento e sair alterando é o caminho certo para se perder.
- Use o Revision Mode do Final Draft ou Writer Duet para organizar suas alterações. Salve o nome do Revision Set com o número do tratamento e a data que você terminou. E para o Terceiro Tratamento (olha que evolução), use a função Next e renomeie a versão. Isso te ajuda a enxergar as alterações e caso precise resgatar alguma coisa, consegue voltar na versão certa.
- Faça uma beat sheet do primeiro tratamento para planejar suas alterações. É mais fácil repensar a estrutura, mudar cenas de lugar e prever se a alteração que você quer fazer vai funcionar numa lista resumida das cenas do que no roteiro. A lista de beats vai ter 2 ou 3 páginas, é mais fácil navegar nela do que num documento de 90 páginas, certo? E fazer esse resumo do roteiro também é ótimo pra você entender quais são as cenas realmente importante e quais não tem tanta função.
- Também ajuda fazer uma Tabela de Personagens. Nas colunas você coloca Ato1, 2A, 2B e 3. Nas linhas, o nome dos personagens. Depois vai preenchendo RESUMIDAMENTE, o que cada personagem fez em cada ato. Assim você consegue enxergar se o arco do personagem tá fazendo sentido, se algum coadjuvante desapareceu da história ou ficou muito tempo sem aparecer e etc.
Enfim…
Confesso que às vezes ainda é DOLORIDO reler um roteiro, enxergar nele todas as minhas falhas e incapacidades e ter coragem pra reescrever. Mas começar o processo é mais difícil do que o processo em si. À medida em que vou trabalhando, vou me encontrando nos labirintos do texto, mapeando novos caminhos e ganhando confiança novamente.
No fim das contas, reescrever um roteiro significa revê-lo, mesmo nas partes em que você achou que acertou. Isso porque a partir do momento que você fizer mudanças significativas num determinado ponto da história, o que vier a seguir precisará ser reescrito também, tanto pela lógica quanto pelo estilo. E o que você achou que já estava bom pode ficar ótimo.
O importante é você embarcar nesse processo de cabeça aberta, sabendo que ele é imprescindível pro seu trabalho ficar ainda melhor. Isso sem falar que quando você for um roteirista experiente numa sala de roteiro de um grande streaming, reescrever vai ser 90% do seu trabalho então é bom ir preparando o psicológico! Mas isso é assunto para outro post…